O Estado das Coisas

Minha visão sobre o trabalho do Designer de Produtos Digitais nos anos 2020

Nos últimos anos, o design de produtos digitais se popularizou no projeto e construção de soluções ponta a ponta. Nesse período, o trabalho do designer sofreu mudanças e, assim como em outros campos de atuação em TI, continua a se reformatar constantemente. Isso gera especulações, dúvidas e receio por parte dos profissionais da área frente ao futuro da profissão.

Nesse sentido, acredito na história como forma de encarar essas questões e tenho para mim que, para entender este futuro, precisamos olhar para o passado recente.

História Recente do Design Digital

No inicio dos anos 2010, quando comecei a me aventurar no design, o profissional requerido pelo mercado era do tipo versátil e generalista, que entregava todo o projeto, desde a concepção até a implementação e eventual manutenção.

O Webmaster

Naquela época, o designer era um verdadeiro "faz-tudo". O profissional não era apenas responsável pela criação de interfaces e a identidade visual dos sites, mas também gerenciava toda a infraestrutura necessária para implementar e manter esses sites no ar. Isso incluía implementar códigos, testar seus próprios designs, medir e otimizar a performance, configurar servidores, garantir a segurança do site, e até mesmo resolver problemas técnicos que surgissem. Em outras palavras, o designer também era um desenvolvedor por natureza - ou ao menos um entusiasta do desenvolvimento de software como parte essencial seu craft.

Essa versatilidade só era possível porque o cenário tecnológico era menos complexo comparado a realidade atual. Os frameworks ainda estavam se desenvolvendo e a tecnologia de desenvolvimento front-end não era tão fragmentada como hoje. Portanto, o designer tinha que ser capaz de entender e aplicar conhecimentos de HTML, CSS, JavaScript, além de ferramentas de design gráfico e gerenciamento de conteúdo.

Isso evidentemente impedia que este profissional pudesse entregar o melhor serviço para todas essas pontas. Principalmente relacionado ao próprio processo do design, da pesquisa de experiência do usuário a otimização das intefaces. Em um cenário de menos especializações, onde era comum um único profissional se responsabilizar por várias etapas do processo, não havia tempo e espaço para dedicar-se integralmente a aspectos hoje considerados vitais para a qualidade e sucesso de um produto digital.

Especialização da Profissão

Contudo, à medida que a tecnologia avançou e a digitalização de produtos e serviços se tornou uma realidade inevitável, surgiu a necessidade de especialização da mão-de-obra. As empresas começaram a perceber que, para ter diferenciais competitivos, criar produtos e qualidade e proporcionar experiências verdadeiramente excepcionais aos usuários, é preciso aprimorar diferentes aspectos do design. Não se trata apenas de ter um produto digital, mas principalmente em criar belas e embasadas soluções que proporcionem uma experiência otimizada e de boa usabilidade aos usuários. Evidentemente afim de reter esta base de usuários e continuar a atrair mais público consumidor, vender mais produtos e garantir a expansão das empresas no mercado digital.

Essa mudança foi impulsionada por diversas tendências, mas principalmente pela transformação digital acelerada durante o período da pandemia. De repente, a demanda por soluções digitais cresceu exponencialmente, e a complexidade dos projetos na área também aumentou. Para atender esse cenário, a divisão de tarefas e a especialização se tornaram essenciais para subir o nível de qualidade e eficiência no desenvolvimento de soluções. Hoje, ter um diferencial competitivo no mercado digital significa entender profundamente o negócio, o cenário e os usuários, promovendo a criação e aprimoramento de soluções que se destacam em meio à concorrência.

Por conta disso, nos últimos anos vimos uma especialização crescente nas profissões de design. Os novos trabalhos buscam, sobretudo, olhar com mais atenção ao usuário - ou público consumidor dos produtos digitais. O que levou à formação de equipes multidisciplinares, com diferentes designers, mas cada um se concentrando em uma área específica focada no usuário, como interface, experiência, conteúdo ou pesquisa.

Por exemplo, um designer focado em interface (UI) pode se concentrar em criar interfaces visualmente atraentes e intuitivas, enquanto um designer de experiência do usuário (UX) dedica o seu tempo a entender as necessidades dos usuários e garantir que o produto seja fácil e agradável de usar. Da mesma forma, especialistas em conteúdo se concentram em criar textos (microcopies) e sistemas de comunicação, e pesquisadores de UX buscam insights com usuários para informar e embasar o processo de design.

Toda essa especialização do trabalho trouxe novas oportunidades, permitindo que os designers se tornem especialistas em diferentes etapas do processo e áreas de atuação em produto, desenvolvendo e aprofundando habilidades. Empresas com foco em produtos digitais e/ou desenvolvimento de software passaram a ter times com muito mais designers do que antigamente, afim de acelerar e aprimorar suas soluções e crescer no competitivo mercado digital.

Retorno do Designer Generalista

No entanto, hoje estamos observando um movimento reverso. Após layoffs, reestruturações dos espaços de trabalho e outras mudanças provocadas pelo mercado, há uma demanda crescente por designers ditos "mais completos".

Empresas estão diminuindo times e procurando profissionais que possam transitar entre diferentes áreas do design e colaborar de forma integrada com os diferentes núcleos do produto, como o desenvolvimento de software e área de negócios. Procura-se por um profissional que não saiba "só" desenvolver interfaces ou "só" fazer pesquisas com usuários, mas um profissional que faça isso, mas também seja capaz de fazer - ou gerar valor para cumprir - o que for necessário para eficiência operacional do time e qualidade do produto.

Não simplesmente pelo acumulo de funções ao profissional, afim de empresas minimizarem custos e maximizarem seus ganhos - talvez, um pouco disso mesmo -, mas também, ao meu ver, pela valorização da interdisciplinaridade na atuação do profissional de produto.

Dito isso, esse movimento de retorno ao designer generalista é impulsionado por quatro razões principais que analiso neste cenário. Primeiro, (1) muitos projetos agora exigem uma abordagem mais integrada, onde a colaboração entre diferentes disciplinas é essencial para o sucesso. Se um designer atua no projeto de um produto digital, é imprescindível que este saiba sentar na mesma mesa e discutir o que for necessário com quem está implementando seus designs e com quem está fazendo a gestão do produto. Isso porque (2) a especialização extrema pode levar a uma fragmentação do conhecimento, gerando silos organizacionais dentro da área de produto e dificultando a criação de soluções coesas e holísticas.

Nesse sentido, (3) o mercado passa prezar pela crescente eficiência operacional e flexibilidade no ambiente de trabalho, onde equipes menores e mais ágeis são valorizadas. Principalmente ao observarmos nos últimos 2 anos, em que estamos só começando a ver (4) o impacto da Inteligência Artificial na otimização de processos relacionados ao projeto, implementação e gestão de produto, que vem acelerando o tempo para concepção e entrega de soluções digitais (falarei mais especificamente sobre IA e Design em outro artigo).

Frente a esses fatores, hoje um designer generalista atuando com produtos é valorizado por sua capacidade de entender e contribuir em várias etapas, não apenas no processo de design, mas também no desenvolvimento e gerencia do produto. Isso inclui a habilidade de se comunicar bem com equipe técnica, entender as necessidades e objetivos do negócio e pensar estrategicamente sobre o impacto de suas decisões no design do produto.

O Papel do Design no Desenvolvimento de Produtos

Na minha visão sobre futuro da profissão do designer de produtos digitais, é crucial que este profissional compreenda não apenas o design em si, mas também como este é um componente que se integra a visão holística de um produto digital. A especialização é crucial e muito valiosa em determinados aspectos, mas desde que seja acompanhada de um conhecimento integral e holístico do processo de elaboração, implementação e avaliação dos produtos e serviços (ainda quero escrever um texto falando especificamente das correlações entre design e o ciclo de policy-making).

Generalismo vs Jack of All Trades

Eu acredito veementemente no papel do designer generalista como uma tendência para o futuro da profissão. Mas, ao contrário do que se especula muito na internet hoje, para mim, isso não significa que o futuro do designer é se tornar um "Jack of all trades, master of none", retomando aos tempos passados.

Não significa que o designer precise necessariamente saber codificar e implementar seus próprios designs. Mas é de suma importância que este profissional saiba se comunicar com os desenvolvedores e engenheiros, durante a fase de concepção do que será feito e, principalmente, durante a implementação do design que projetou aos usuários.

Da mesma forma que é evidente que não significa que este deve incoporar funções da gerencia de produto, cuidar das métricas de sucesso e dos objetivos estratégicos como parte dos requisitos para vaga de um product designer. Mas é igualmente valioso que o profissional entenda o que é necessário para estratégia e sucesso do produto, de forma a advogar pelo usuário durante todo o processo.

Há quem argumente que com crescimento de trabalhos como "design engineer" e "front-end designer", ou pelo fato de muitos designers de formação estarem ocupando cargos em gerencia de produto, que esteja ocorrendo uma fusão generalizada do que são hoje profissões bem estabelecidas no mercado de TI. Eu, no entanto, tenho um olhar mais otimista para esse cenário.

Design como balizador entre desenvolvimento e negócios

No ambiente de desenvolvimento de produtos digitais, o design deve atuar não apenas pelo usuário, mas principalmente como um elo estratégico entre as disciplinas que compõem um time de produto. O designer generalista é aquele profissional capaz de entender claramente o usuário do produto, e também capaz de contribuir com que for necessário para que um produto vá ao ar, desde a concepção até a implementação, sendo essencial em sua atuação gerar o valor do design em diferentes aspectos ligados a solução. Isso inclui:

Viabilidade Técnica

Compreender as limitações e possibilidades dentro do escopo técnico é essencial durante a concepção e implementação das interfaces do usuário. O designer precisa colaborar com desenvolvedores para garantir que as soluções propostas sejam de fato viáveis, otimizando tempo e recursos, pela eficiência operacional do projeto. Na minha opinião, o designer deve ser sempre o melhor amigo dos desenvolvedores. Isso porque, essencialmente, sem esses profissionais, o projeto de design não é materializado do campo das ideias - ao menos na atualidade do mercado hoje. Isso significa que os entregáveis do design devem ser feitos com um cuidado especial aos desenvolvedores, porque a etapa de desenvolvimento e implementação já fez parte do "craft" originalmente encabido aos próprios designers e foi separado com a especialização das profissões mencionada anteriormente.

Objetivos de Negócio

O designer deve advogar pelas demandas dos usuários de forma alinhada ao escopo de objetivos estratégicos e demandas da própria empresa. Isso significa que o designer deve entender quais são as necessidades dos usuários do produto, e também da empresa detentora do produto. Mas principalmente, como o projeto do produto deve se planejar estrategicamente, de modo a atender esses usuários dentro do que se é possível no contexto em que está situado. Um bom design não é apenas capaz de entregar a melhor experiência, mas também capaz de impulsionar os resultados esperados do projeto pela empresa.

Experiência do Usuário

É dever do designer colocar as demandas do usuário no centro do processo de construção de suas interfaces. Entender as necessidades, comportamentos e expectativas de quem vai usar o produto é fundamental para criar soluções que resolvam problemas reais e proporcionam uma experiência fluída e memorável, fazendo com que usuários retornem ao produto. Nesse aspecto, entram as principais tarefas encabidas comumente aos designers, como a realização de pesquisas com usuários, até a criação de protótipos e testes de usabilidade.

Colaboração Transdisciplinar

Diante desses aspectos, a criação de um produto digital bem-sucedido requer a colaboração dialógica de várias disciplinas. Designers, desenvolvedores, gerentes, especialistas em marketing e outros stakeholders ligados ao produto, precisam sentar na mesma mesa e trabalhar juntos para garantir que todas as perspectivas sejam consideradas. Na minha visão, uma das maiores contribuições do designer é atuar como um facilitador desse processo, ajudando a integrar as diferentes visões e garantir a coesão do produto final. O design thinking - apesar de deturpações ligadas ao termo - é uma metodologia que deve ser disseminada pelo designer e adotada por todos no time, promovendo a transdisciplinaridade necessária em times multifuncionais de forma fluída e centrada ao usuário do produto.

Para mim, essas quatro noções são essenciais para compor o perfil multifacetado e estratégico que o designer generalista da atualidade deve ter. Veja como em momento algum falei sobre ferramentas ou hard skills. Na minha visão, estamos diante de um paradigma cuja chave para masterizá-lo vem com o aperfeiçoamento comportamental, das relação interpessoais e do entendimento multidisciplinar que o designer tem sobre o Estado das Coisas.

O medo da amplitude e a realidade prática

“Todos os homens são designers".

Esta afirmação do pioneiro do design social, Victor Papanek, ilustra, sobretudo, o caráter transcendental do que é design. Muito mais do que uma profissão, um conjunto de metodologias, frameworks e ferramentas (hard skills) é um princípio elementar na projeção de soluções. Principio, este, que como Papanek diz parte de "um esforço inconsciente para impor ordem significativa às coisas". Ou seja, design é para todos e deve transcender a profissão do próprio designer e suas especializações (também quero trabalhar mais especificamente essa ideia em um futuro texto).

É claro que, apesar de ser uma virada de chave mais ligada a soft skills do que qualquer coisa, é sim necessário estudar e se atualizar constantemente sobre o mercado de produtos digitais. É natural que muitos sintam um certo receio diante da amplitude de conhecimentos necessários e a acelerada dinâmica do cenário de TI hoje. A chave, porém, não é conhecer tudo, mas sim saber olhar para o outro como fonte de inspiração para conhecer mais.

Nós, como designers, sabemos que a máxima da nossa profissão sempre foi resolver problemas. Seja lá de qual forma, nós somos motivados pelo desejo de pesquisar e investigar, descobrir dores e oportunidades, propor ideias e, principalmente, projetar soluções.

Ninguém espera que um designer seja um programador avançado ou um especialista em negócios e, apesar de alguns posts sensacionalistas no LinkedIn, realidade não é essa. O que se espera é que este profissional compreenda o suficiente sobre desenvolvimento para dialogar com os engenheiros e entender os requisitos técnicos, e que tenha noções de negócios para alinhar seu trabalho com o responsável pela gerencia de produto e os objetivos da empresa. Tudo isso para que o projeto da solução do designer seja completo e em consonância com todas as partes de interesse.

O designer generalista é valioso nos dias atuais principalmente por ser um profissional capaz de transitar entre diferentes áreas do conhecimento. Em outras palavras, o designer deve procurar ser uma pessoa curiosa, humilde e empática. Curioso porque é obstinado por questionar e investigar; Humilde já que compreende as limitações do seu conhecimento e porque sabe que não vai - e nem precisa - ser um especialista em tudo; Empático porque, para ter um design efetivo, sabe que precisa se conectar e dialogar com outras pessoas afim de projetar a melhor solução. Ou seja, não significa ser um expert em todas as disciplinas, mas sim ter uma visão ampla e a capacidade de colaborar com outros especialistas.

Portanto, a chave para o sucesso está na comunicação, na empatia e na capacidade de entender, não apenas o micro das suas funções, conceitos e ferramentas de design, mas principalmente o macro, o todo, sabendo o que, como, por quê e por onde se vai gerar valor em um produto, em um time, em uma empresa ou na própria vida.

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